O dia amanheceu
chuvoso e Pablo chegou no trabalho completamente encharcado, sua calça jeans
desgastada pelo tempo e sua jaqueta favorita eram as suas principais marcas
ali, no meio daquela gente toda que não tinha muito tempo para observá-lo diferentemente
dos seus seguidores que interagiam até com aquela foto aleatória postada antes
de sair de casa sobre aquele céu prestes a desabar com tanta água. Não importava
se o tempo não estava aberto ou lindo, tudo virava conteúdo, tudo o que ele
fazia quando não hitava, virava conceito principalmente com aquelas
legendas do tipo motivacionais que nem ele mesmo acreditava: “só agradecer”.
Ali com a roupa grudada ao corpo sob aquela sala congelante ele só queria encontrar
palavras para agradecer aquele maldito banho de água que havia levado de um
motorista apressado minutos antes de entrar naquela empresa. Lógico que ninguém
daquela rede social precisava saber o caos que era a sua vida e era a única
coisa que o confortava: o anonimato e a solidão tinham lá as suas vantagens. Eu
acho.
O que
ele não imaginava é que alguém o observava através do reflexo do vidro embaçado
daquela janela. Sim, Pablo, alguém te admirava ao longe, segurando folhas
avulsas e sorria com o seu jeito tímido e desengonçado de ser. Era um olhar esverdeado
rasteiro e desconfiado como se fosse ser “pego no flagra” a qualquer momento, seu
coração acelerava só de pensar nisso, só de pensar que a cada movimento mínimo
que Pablo fazia, ele poderia acabar se entregando, mas não poderia entregar as
cartas assim... de bandeja. Precisava conhecê-lo melhor e seguia uma ética no
trabalho que o impedia de abrir as oportunidades para o coração – coração... era o bem mais precioso de Caio, orgulhava-se
por não viver de aparências e nem de personagens virtuais, como daquele garoto
esnobe que havia postado uma foto mais cedo, agradecendo pelo tempo fechado... “quem
agradece pelo tempo fechado numa manhã de segunda-feira quando precisa
atravessar a cidade para chegar a qualquer lugar, como aqui, nesse lugar frio e
sem vida.” Caio, sinto em lhe informar, mas aquele cara que tanto te incomodou
com aquela foto superficial, é o mesmo que você está admirando agora pelo
reflexo da janela. A vida é realmente uma piada.
Aquele cara
bronzeado, com músculos quase saltando do corpo, com um cabelo brilhoso e
invejável estava ali a sua frente como realmente era: de aspecto pálido, sem um
corpo nada definido e uma touca que cobria o seu cabelo - esse era o Pablo que
ninguém conhecia e que não se achava suficientemente atraente para chamar
atenção de alguém aqui fora, fora dessa bolha virtual que nos aprisiona através
dessas malditas pressões estéticas. O que Pablo não sabia é que estava enganado,
extremamente enganado, Caio ficava contando os minutos para que ele chegasse e
trouxesse um pouco de brilho e ânimo para aquele ambiente sistêmico, mesmo que
não trocassem palavras, era a presença de Pablo a única que de fato fazia
diferença para a monotonia do dia-a-dia. Mas ao vê-lo naquela situação, não
pode se conter e resolveu falar com ele:
- Oi, Pablo, né?
Prazer eu sou o Caio, do setor 7, eu vi você chegando todo molhado e eu trouxe
uma camisa extra porque eu sei que uma hora ou outra iria precisar. Não vai
ajudar muito, mas pode aliviar e tenho uma toalha também, melhor que assim você
não corre o risco de pegar um resfriado e não aceito não como resposta. Um
silêncio tomou conta daquela conversa, a impressão é o que tempo tinha parado para
aqueles dois.
Pablo estava paralisado,
seu coração quase ia saindo pela boca de tão nervoso que ficou, não conseguia
acreditar que ele estava ali, na sua frente e lhe oferecendo ajuda. Estava duplamente
envergonhado porque não imaginava que Caio o observava e que mesmo sem terem
muita intimidade estava ali solicito e perfeito do jeito que sempre imaginou
antes de ir dormir. Sem conseguir mais uma vez formular nenhuma frase, fez um
leve gesto trêmulo de que sim, estava aceitando a sua ajuda. Pablo se direcionou
ao banheiro e em seguida Caio foi levar a toalha e a camisa disfarçadamente
dentro da bolsa para que ninguém notasse, ainda que no geral ninguém prestasse
atenção mesmo a nada além de si.
Enquanto Caio não
chegava, Pablo ensaiava o que ia falar em agradecimento, treinou por tantas
noites e agora não conseguia lembrar de nada, não queria dar a impressão de que
era mal agradecido, mas também não queria parecer exagerado demais e o espantasse.
No trajeto até o banheiro, Caio pensava a mesma coisa. Assim que entrou, seus
olhos se cruzaram e como num instinto os dois falaram ao mesmo tempo. Pediram
desculpas e retomaram a conversa... ao mesmo tempo. Os dois sorriram. Enquanto
ia enxugando o seu cabelo, Caio o admirava e sentia que precisava falar tudo o
que sempre quis dizer a Pablo, seus sentimentos, o medo de se envolver – se quer
sabia se ele era comprometido. Entre o sim e o não, preferiu mudar de assunto. “Eu
não consigo entender essa galera positiva da internet que acorda animada até em
um dia tempestuoso como esse.” Nesse momento Pablo dá um leve sorriso sem-graça
e concorda com ele, lembrando que ele faz parte dessa “galera”. “Você acredita que
eu vi um hoje postando uma foto super vibes amor e paz, com a seguinte legenda:
‘só agradecer’?” Eu não tenho nenhum problema com isso, mas esse tal de P.
Riveira, acho que é assim o nome, não passa de um personagem, não dá pra
acreditar em nada que esse cara fala. P.Riveira na verdade era Pablo Riveira.
De repente todos
os planos de Pablo vieram abaixo: achava que a única forma possível de chamar a
atenção de Caio era por meio do destemido P.Riveira. Jamais imaginou que o
personagem, como Caio mesmo já havia dito, que havia construído não despertasse
a atenção de Caio do jeito que Pablo sempre havia imaginado. Quais armas agora
poderia usar, não estava preparado para essa rejeição porque ali era sua zona
de conforto e mesmo que não conseguisse desenvolver nenhum assunto com Caio
naquele banheiro, já estava preparado para chama-lo no direct à noite e
oferecer toda a espontaneidade que não conseguia ter ali diante do cara que
sempre desejou. Não conseguia acreditar que iria depender do seu anonimato para
despertar o interesse de Caio. Enquanto isso, Caio observava Pablo e notava o quanto
ele era ainda mais bonito pessoalmente, diferente daquele cara superficial que
só postava foto do sorriso, de um dos lados dos olhos, dos braços, quem se interessa
só por pedaços do corpo? Pablo, não era esse tipo, era inteiro ali para ele.
Era dessa completude que Caio sempre esperava. Pelo menos era o que passava por
sua mente e ele resolveu verbalizar isso tudo ali.
Os olhos de Pablo
encheram de água e como que já cansado de tanta superficialidade, desaba ali
diante de Caio que sem entender nada, fica imóvel e paralisado diante daquela
reação. Em toda a sua vida, ninguém jamais tinha dito aquelas palavras para ele
e aquilo atravessou a sua alma dilacerando todas as suas expectativas e inflamando
as suas frustrações. É então que ele abre o jogo e explica que P. Riveira na
verdade era Pablo Riveira, que tudo aquilo que Caio havia dito mesmo que não
quisesse ouvir, era necessário. P.Riveira era o personagem que fazia a vida de Pablo
ter sentido, era onde poderia ser alguém mais desejável e menos solitário
porque na vida real se sentia um bosta e que ninguém jamais iria olhar pra ele
como... Nesse momento ele é interrompido com um súbito beijo. “Você é o meu
único motivo aqui dentro, Pablo, espero que entenda que agora você entenda
isso, você merece o mundo todinho como você é e não como os outros esperam que
você seja, seu besta.” Os dois se abraçam e se despedem.
O fim do dia
chegou e ali deitado na cama, Pablo não consegue tirar as palavras de Caio da cabeça,
era muita informação para processar. Uma notificação de mensagem do seu avô
chega e dessa vez ele responde, contando tudo o que havia acontecido e também se
desculpando. Naquela mesma noite, ele vai até o seu perfil e posta uma foto com
seu avô e a legenda diz o seguinte: oi, eu sou o pablo riveira e essa é a minha
verdadeira história.
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